terça-feira, 30 de outubro de 2012

Um amor contingente


Escrevo como quem segue um método de cura. Confesso que hesitei muito em fazer isso, eu que sempre fui econômico no uso das palavras. Acharás estranha, tenho certeza, minha súbita necessidade de comunicação. Sinto tua falta e, ao dizer-te, quase escuto teu riso escancarado a concluir: Quando vais tomar jeito? Então, é possível que sintas falta de alguém?
Perdoa minhas estúpidas tentativas de interpretar-te que, aliás, se tornaram compulsivas. Talvez não penses nada ao ler o que escrevi, ou afastes o cabelo do rosto e sacudas a cabeça de um jeito só teu. Ou, quem sabe, nunca tomes conhecimento do que aqui vai.
Tenho dedicado boa parte do meu tempo a refletir sobre o silêncio a que me submeti, aos momentos de perplexidade que tua presença me impôs, apequenando-me diante do que concluí ser teu brilho pessoal, excessivo para mim. Estranha forma de amar que leva o sujeito a conter-se diante do objeto desejado, limitando-se à muda reverência, bebendo de seus gestos e palavras tal qual o religioso diante de um ícone sacro.
Contudo, sempre tive a certeza de que minha conduta te bastava, como se também estivesses convencida de ocupar um lugar tão especial que aos demais restasse somente reconhecer tal posição. Por isso, foram incompreensíveis as observações sobre meu distanciamento, sobre a frieza que seria meu padrão diante de ti, tudo em desacordo com o que me pareceu ser um vínculo de completude. Senti-me confuso por tua postura, a meu ver, contraditória. Falaste de coisas desconhecidas, numa língua desconhecida. Comunicação truncada. Quem és, quem foste tu, afinal? Amores necessitam semelhanças, afinidades, coisas em comum. A começar pela linguagem.
É pouco crível que amenizes minha angústia se não tenho sequer para onde enviar meus questionamentos. Desapareceste sem nenhum aviso, de uma forma que poderia ser classificada como crueldade, ação talvez aceitável vinda de uma mulher que não conheço. Mas, veja, tens um nome que me é familiar, olhos, cabelos, boca, gestual que remetem a momentos imprimidos em minha memória. As palavras que vão, pouco a pouco, preenchendo o branco do papel, constituem um monólogo insensato. Para que mesmo?

Meus pensamentos vagam pela névoa de lugar nenhum. Organizá-los é tarefa desanimadora. Pois que dancem, bêbados, livres de quaisquer amarras da consciência, numa agradável irresponsabilidade nunca experimentada. A chance de manifestar, sem freios, tudo o que me vier à cabeça, é um prêmio inesperado.
Nada me impede de rever cenas passadas e dar-lhes outras roupagens, poder zombar de tudo e de todos, inclusive de mim. Danem-se os que sempre admiraram minha polidez e meu sorriso adequado. Dão-me vontade de vomitar nos tapetes da hipocrisia.
A criatura que me pôs no mundo — a querida mãezinha, como ela exigia ser tratada — ensinou-me tudo o que uma mulher não deve aprender: ser dócil, obediente, conciliadora, capaz de perdoar e jamais levantar a voz. Alguns itens de sua eficiente lavagem cerebral foram rejeitados, outros tantos burlaram minha rebeldia e surgiram no exercício do politicamente correto. Ah!, quantos elogios gratuitos, expressões de tédio e raiva contidas em nome da educação e conveniências sociais. Impossível cobrar-me coerência.
Não é de admirar que, por influência das lições recebidas, eu tenha feito o que ela considerava a primeira realização do gênero feminino: casei-me. Sem nenhum entusiasmo disse o sim na hora e no local errados, se é que existem hora e local certos para isso. O arrependimento não se fez esperar. Experimentei o silêncio e o vazio de um relacionamento que quase nada tinha a oferecer.
Teu comportamento, meu caro — e esta é a expressão adequada — foi o de um mero coadjuvante, de alguém que se limitou a um mínimo de comunicação verbal e física, como se não estivesse de todo presente, ou como se relacionar-se fosse um sacrifício excessivo. Não me senti, em momento algum, desejada, com toda a carga de emoção que isso possa significar para uma mulher. Ao contrário, teu olhar fixo, permanente e mudo, incomodava-me, violava minha privacidade, despia-me sem erotismo, como um colecionador examina com lupa seu troféu.
Poderias argumentar, se lesses o que escrevi, que dei minha contribuição tácita para ratificar a caricatura de nossa parceria; talvez tivesses uma ponta de razão, o que não neutraliza teu frouxo comportamento, tua passividade como homem e polo positivo de uma relação a dois. Machismo de minha parte, quem sabe, o que não seria nada estranhável, já que alguém tem que ter uma postura crítica mais enfática e lógica após o distanciamento. Aliás, até mesmo para encerrar a farsa que vivemos, a atitude mais drástica foi minha, ao tomar a iniciativa de um afastamento definitivo e sem explicações. Afinal, não seria na separação que iríamos nos comunicar, invertendo os momentos em que essa virtude foi necessária.
Nada mais posso dizer para encerrar este desabafo, a não ser eximir-me de qualquer responsabilidade por nosso fracasso, enfatizar minha sensação de liberdade e até admitir uma doce vingança por abandonar-te sem explicações e sem culpa. Tampouco serei hipócrita a ponto de desejar-te uma protocolar felicidade. Não. Quero, isso sim, que te percas e te lastimes na pior solidão. Que ela seja companhia amarga e permanente, a lembrar de tua incapacidade como ser humano. A partir de minha saída, não me arrependo de nada.

Imagem de Vitor Nunes

 

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

A Escalada



— Seis meses. Sinto muito. Você deveria ter me procurado há um ano, pelo menos.        
— Não pode ser! Há tantos recursos: cirurgia, quimioterápicos, rádio.      
— Não há nada a fazer. Lamento profundamente.
        Faz alguns dias que ouvi essa sentença. Tive o impulso de matar o médico. Ouvi outras opiniões, algumas mais pessimistas em termos de prazo final. Desde então, não saí de casa, não comi, nem falei com ninguém. Dormi pouco e chorei muito. Ignorei chamadas e mensagens no telefone. Pensei em abreviar a espera, mas não combina comigo. Não tenho propensão para saídas trágicas. Passei toda a vida jogando com a morte e ganhei sempre. Agora vai ser diferente, um último jogo sabendo que vou perder. Mas será do meu jeito e quando eu quiser. Então, mesmo perdendo serei o vencedor.
Hoje consegui sair. Almocei sozinho. Retomei contato com meu escritório na empresa, mas cancelei todos os compromissos agendados, inclusive ligações externas. Convoquei reunião de diretoria para esta semana. Deleguei decisões para o departamento administrativo e suspendi contato com meu corretor da bolsa. Voltei cedo para casa. Refeição simples e um Malbec encorpado. Sono pesado e sem sonhos.
Levantei cedo, vesti roupa leve, fui caminhando para o trabalho e pedi café com torradas. Tentei falar com os filhos para marcar almoço ou jantar, mas nenhum deles dispõe de tempo. Encerrei o dia, retornei a pé e me senti revigorado. Fiz várias ligações para meu grupo de viagens, rimos, combinamos jantar amanhã, e fui dormir em paz.
Acordei tarde e fiz as compras para a noite. A governanta se encarregará de tudo. Avisei à secretária que não irei à empresa hoje. Liguei para os filhos. Incomunicáveis. Fiz uma bela caminhada pelo bairro, curtindo uma sensação de liberdade incomum. Amigos confirmados para hoje, aguardei com ansiedade nosso encontro. Foi compensador. Juntos, como na última vez. Para minha surpresa, todos aderiram com entusiasmo à proposta de uma nova aventura dentro de trinta dias. Fiz questão de assumir todos os detalhes, desde as reservas de hotel e vôos até a verificação dos equipamentos. Reunião de diretoria. Fui breve. Comuniquei que me retirava da empresa e coloquei as quotas à disposição. Tudo muito informal, documentos assinados, abraços de despedida e brincadeiras sobre vida nova. Antes de sair, enviei mensagens aos filhos para combinar almoço, café, qualquer coisa. Impossível. O mais velho está saindo de férias com a mulher, o outro preparando uma pós-graduação em sei-lá-o-quê. Desejei-lhes boa sorte. À noite, súbita vertigem acompanhada de náuseas. Nada sério.
Providenciei o necessário para a viagem. A expectativa é grande e a comunicação permanente. Chequei todas as listas e não esqueci nada. Estamos em contagem regressiva, o mal-estar prossegue. Pura ansiedade. Tomei outras providências pessoais. Liquidação de todos os negócios, resgate de aplicações financeiras. Venda de todas as ações. Tudo o que tenho foi creditado numa única conta com disponibilidade permanente.
Tenho dormido pouco, saído menos ainda, apenas o suficiente para caminhadas diárias. Dedico especial cuidado à minha alimentação. Precisarei de toda a vitalidade nessa aventura que inicia dentro de alguns dias. Também não descuido dos medicamentos prescritos por meu médico. Meu estado geral parece bom, apesar do desconforto persistir. Nada que não seja administrável.Sinto-me num estado de excitação quase infantil, como na primeira vez em que viajei sem minha família, com um grupo de escoteiros ansiosos por experimentar desafios. Sonho todas as noites com isso, misturando com experiências mais recentes em que me vejo sempre criança.Finalmente. Amanhã embarcaremos. Tudo conferido. Nosso grupo aguarda, como se fosse uma só pessoa, o momento da partida. Temos conversado bastante, planejando cada passo, revendo todas as possibilidades. Hoje precisarei de um calmante para dormir.
A taquicardia se manifestou quando aterrissamos no aeroporto de Mendoza. Retiramos nossa bagagem e equipamentos. Depois de recebidos no hotel, retomamos contato com a cidade tão conhecida de outros momentos. A gastronomia e os bons vinhos embalaram nossos sonhos.
O dia amanheceu convidativo. O céu muito azul e límpido associou-se ao sol brilhante. Acordei bem antes de o dia clarear e esperei com impaciência meus companheiros para o café da manhã. Animados, de excelente humor, devoramos o que havia pela frente, prontos para dar início à programação traçada com cuidado. Conferimos o bom estado dos veículos de suporte, lotamos os bagageiros e partimos.Seguimos rumo ao Parque Provincial Aconcágua, perto de Mendoza, nos Andes argentinos. Nossa meta: o monte Aconcágua, o ponto mais alto do Hemisfério Sul, com quase sete mil metros de altitude, desafio a alpinistas de toda parte. Às margens da Rota de Alta Montanha, fizemos uma respeitosa parada no Cemitério dos Andinistas, último refúgio dos que morreram sem atingir o cume. Foi um momento de grande impacto: na parte mais elevada do cemitério, uma cruz de pedra caiada ostentava várias botas de alpinismo — homenagem a um dos vencidos. Senti-me parte do túmulo, da cruz branca, da placa que poderia ter meu nome gravado. Tristeza e inutilidade. Ali ficou boa parte da energia que eu cultivara para a maior de todas as aventuras.
Retomamos a fase seguinte do objetivo. Segui em silêncio. Não havia mais nada para dizer. A chegada ao ponto que chamam de Confluência não ofereceu nenhuma dificuldade, a não ser a primeira sensação de ar rarefeito. A próxima etapa, o acampamento base, ou Plaza de Mulas, parada obrigatória a mais de quatro mil metros de altitude, foi escolhida como local de pernoite. Apenas nosso grupo. Os que nos precederam já haviam seguido adiante, rumo ao outro acampamento. Uma noite fria para todos e, para mim, de vigília e confusos sentimentos.
O amanhecer foi um alívio. O sol afastou os fantasmas da noite e pensei que seria possível retomar melhor disposição. Todos pareciam aguardar alguma palavra minha enquanto me olhavam sem nada dizer. Apesar de veteranos naquela escalada, o clima era de apreensão. Após o café, sugeri iniciarmos a subida até Nido de Condores, situado a mais de cinco mil metros. Tinha motivos para pressa — as náuseas e dores generalizadas tornaram-se freqüentes na noite anterior. Teria de desistir se as vertigens voltassem. Entretanto, algumas horas depois, nos permitimos nova parada. A velocidade do vento e a diminuição do oxigênio nos fatigaram. Minha taquicardia completou a necessidade de um descanso maior. A subida ao próximo acampamento foi adiada para recuperação completa do grupo. Conversamos, admitimos nossos limites. Contei-lhes que precisava chegar ao cume, como necessidade pessoal, como fechamento de uma vida inteira. Escutaram-me em silêncio, cabeças baixas. Algumas horas depois recomeçamos. Senti-me confortado. Não conseguiria meu objetivo sem ajuda. Admitir isso me devolveu certo controle sobre o corpo e emoções.
Foi muito difícil chegar a Nido e a Berlim, últimas etapas antes do cume. Vacilei, precisei de ajuda em vários momentos. A vitalidade era pouca, mas a vontade me empurrou para cima. Chegamos. Todos. Ao topo. Meus olhos bêbados de azul, de gelo e neve, e uma euforia única. Sem dor, sem frio, sem náuseas. Nenhum sofrimento. Aqui eu fico. Peço aos que vieram comigo que desçam. Este momento me pertence. Entrego-me ao Aconcágua e sorrio.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Noites em Palermo

O velho relógio de parede marcava três horas da madrugada quando entrei no boteco mal iluminado de uma rua qualquer em Palermo Viejo. Apenas seis pequenas mesas redondas, cadeiras e um balcão onde despontava a máquina registradora mais antiga do mundo. Atrás do balcão, garrafas empoeiradas não identificáveis. Nas paredes descascadas, fotos de lugares desconhecidos. Nenhum freqüentador, ninguém para atender. Embora sentisse uma necessidade urgente de beber algo, dei meia volta e me dispus a sair em busca de outro local mais convidativo. Foi então que uma voz esganiçada e autoritária chamou:
— Volte aqui, rapaz!
— Falou comigo? — consegui dizer.
— Você está vendo outra pessoa? — resmungou a voz estridente.
Duas semanas em Buenos Aires, cidade que conheço tão bem quanto um portenho. Entretanto, a transferência repentina, justo num momento de crise pessoal, deixou uma sensação desagradável de perda do controle sobre minha vida — como se fosse possível ter controle sobre alguma coisa.
Assim, dividido e contrariado, cheguei à cidade que sempre me foi tão cara. Fiz de conta que estava a passeio, instalei-me no pequeno apartamento alugado pela empresa e tratei de atordoar-me, percorrendo bares e cafés nas noites insones. Durante o dia, o torpor dos vinhos de Mendoza tornava mais penosa a tarefa de gerenciar a filial, há pouco instalada na Avenida Santa Fé.
        Voltei-me, curioso, e custei a distinguir o vulto do velhote sentado à mesa próxima de uma porta interna. Encoberto por uma nuvem de fumaça, chapéu de feltro, lenço ao pescoço, lembrava um compadrito dos subúrbios, retratado por Borges.
        — Sim?
        — Sente-se! — ordenou.
        Tive o impulso de mandá-lo à merda, mas sua idade avançada levou-me a sentar em silêncio na cadeira que ele apontava. A seguir encheu dois pequenos copos com o que me pareceu ser conhaque, bebendo o dele de um só gole.     
— Jerez de La Frontera — disse-me. Beba!
        Bebi todo o líquido dourado escuro; o efeito foi estimulante. Passei a sentir-me à vontade na companhia da estranha criatura. O gestual incluía maneirismos desconhecidos e o linguajar criollo revelava expressões fora de uso que o meu espanhol acadêmico custou a decifrar. Depois de algumas doses ele disse:
        — Espero por você há bastante tempo.
        — Como assim? — perguntei.
        — Não se apresse; logo você vai entender — falou, com um risinho abafado que mais parecia um cacarejo.
        Pela primeira vez, sentia-me um estranho em Buenos Aires. Daria qualquer coisa para retomar a afinidade que marcou minhas viagens anteriores, a trabalho ou passeio. Qualquer coisa que me devolvesse o encantamento de redescobrir cada rua, cada café, praça, em bairros onde a vida escorria prazerosa. Lembrei-me, então, de Palermo Viejo, onde Borges viveu alguns anos da juventude. Encarei a idéia como um bom augúrio e pus-me a visitar, com olhos de detetive, o bairro, hoje destituído do charme de tanto tempo atrás.
        Não dei a menor importância às enigmáticas palavras do velho. Jerez, ou não, o conhaque era magnífico e, pela primeira vez desde minha chegada, me sentia ótimo. Continuamos a beber, até o momento em que se esgotou o conteúdo da garrafa e meu estranho anfitrião falou:
        — Agora posso me retirar. À noite, atrás do balcão, você encontrará outra garrafa de Jerez. Aproveite — disse, com um sorriso diabólico. — Adiós!
        Percebi, com horror, que ele tinha minhas roupas, meu rosto, até a voz era a mesma. Quanto a mim, encoberto por uma nuvem de fumaça, chapéu de feltro, lenço ao pescoço, lembrava um compadrito dos subúrbios, retratado por Borges.

terça-feira, 3 de maio de 2011

protocolo

ao abrir a porta do elevador vê o homem trabalhando e pelo chão
tintas pincéis instrumentos diversos mas ele não parece perceber
sua presença ou prefere ignorá-lo e isso é irritante então é preciso
mesmo dirigir-se à escada pensa são cinco andares mas não
há alternativa e agora nova contrariedade surge pois a passagem
está parcialmente impedida por tábuas e carpete descolado o que
exige manobras de contorcionismo para esgueirar-se sujando a
roupa com risco de uma queda no piso escorregadio enquanto
reflete sobre o quanto é absurdo sujeitar-se a tantos percalços
para chegar ao departamento adequado sem certeza de que será
atendido enfim vence cinco lances da estranha escada até a imponente
porta de acesso impedida por pesada escrivaninha o que
o obriga a rastejar pelo solo áspero de sujeira acumulada quando
enfim penetra no salão despido de móveis apenas com inúmeros
guichês todos vazios até o fundo onde o espera o gabinete im
pessoal porta aberta e no centro uma gigantesca mesa de mogno
na cadeira escura a mulher muito pálida que o examina de alto
abaixo e afivela ao rosto o sorriso exato para perguntar-lhe o que
deseja e ele suspira aliviado já esquecido de todos os obstáculos
afinal alguma atenção embora não exista onde sentar-se explica
a ela que já preencheu os requerimentos necessários anexando
as certidões exigidas e os relatórios manuscritos em três vias fazendo
jus à liberação dos insumos por ter atingido a maioridade
há mais de vinte anos e ouve dela de pé braços cruzados que
tais pedidos costumam ser analisados pela comissão competente
desde que acompanhados do laudo de sanidade e atestados de
ideologia tudo é claro vinculado à estabilização do superávit primário
mas o processo será despachado sem nenhuma dúvida no
último trimestre do próximo ano bissexto mediante apresentação
do protocolo rosa

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Prêmio Sofia de Literatura 2011 (Resultados)

segunda-feira, 18 de abril de 2011


Depois de um ano de trabalho, as Oficinas Literárias Charles Kiefer e Editora Ltda fez a entrega do Prêmio Sofia de Literatura 2011, no dia 17 de abril, no Restaurante Copacabana, com os seguintes resultados:

Primeiro Lugar: Entre Sombras, de Saul Melo (Prêmio de 3 mil reais)

Segundo Lugar: Moinhos de sangue, de Ana Klein (Prêmio de 1,5 mil reais)

Terceiro Lugar: O quase-nada, de Valmor Bordin (Prêmio de 1 mil reais)

Prêmio Especial (Vencedor da disputa interna): Quero ser Reginaldo Pujol, de Reginaldo Pujol Filho (Prêmio de 500 reais).

segunda-feira, 28 de março de 2011

Projeto Livro Livre

Liberta um livro e deixa-o seguir seu caminho. Abandona-o numa sala de espera, num aeroporto, rodoviária, ou qualquer outro lugar, para que seja encontrado por alguém. Essa é a proposta do projeto Livro Livre. Pega aquele livro esquecido na estante, cadastra-o no site http://www.livrolivre.art.br/, coloca-lhe uma etiqueta para identificá-lo e deixa-o ir assim, armado cavaleiro à conquista de novos leitores.
O projeto é inspirado no Book Crossing - http://www.bookcrossing.com/ - vitorioso em 130 países.
Eu já fiz minha inscrição.
O que estás esperando?

segunda-feira, 14 de março de 2011

Delito assumido

Reconheço minhas digitais
em todos os indícios.
Sem nada excluir ou protestar,
aprovo as acusações.

Assino atas que não li,
sorrio às declarações pueris,
sem negar a autoria sequer
de intenções não confirmadas.

Assumo com riso safado
os momentos que gozei,
para escândalo dos castos.

Agravo meu veredicto:
danço indecente
a provocar o desmaio das beatas.

A todos, reservo em triunfo
um último gesto obsceno:
Na hora fatal, como deboche,
passo a mão na bunda do carrasco.

terça-feira, 1 de março de 2011

Notícia

O escritor Charles Kiefer informa que seu livro "Para ser escritor está indo para a segunda edição de 3 mil exemplares". Excelente notícia, principalmente quando os adeptos radicais da tecnologia insistem em prever o próximo fim do livro impresso. Cumprimentos, Charles!

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Extravaso-me em desvios líricos, simplifico-me a tempo de eternizar tua imagem na retina e me divido entre tua busca e meus cuidados de não–invasão. Como se na intimidade houvesse regras, ou estar próximo fosse um segredo inviolável capaz de — revelado — despertar a cólera dos deuses. Enquanto a licitude aponta, em acessos de cólera, a novos pecados capitais, seu dedo acusador me escolhe como exemplo criminoso e desdenho qualquer possibilidade de clemência. Desnudo-me sem pejo e acredito que assim revelo-me sem tecer disfarces, queimo roupagens e máscaras como o aventureiro que ateia fogo às suas naus para tornar irreversível a viagem ao desconhecido. Não cedo aos impulsos burocráticos e comportados, deixo que os delírios me levem a alguma revelação, qualquer uma que não faça concessões. Entrego-me e me integro, como parte de um ritual destinado a exorcizar os medos mais secretos, ou como alguém que — cético — busca caminhos de uma fé renovadora. Porque quando todos os artifícios se revelarem nulos para a certeza da trilha, possa voltar — cego — ao ponto de partida.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Noite muito louca


 

Luz do sol, náusea e dor de cabeça, parei no meio da rua tentando me orientar. Foi a deixa para três sujeitos que passavam falarem, enquanto me mediam de alto abaixo:
— Tu não é daqui, né, magro?
— Não.
 
Não me perguntem como fui parar naquela festa. Coisas que só acontecem em finais de noite na companhia de amigos sem inspiração. Lembro de detalhes desanimadores: cerveja morna, muita fumaça de cigarro e a garçonete improvisada sem desodorante. Para mastigar só cachorro-quente frio. Não tenho certeza, mas acho que foi algum novato na turma quem sugeriu essa indiada, depois de algumas doses de uísque nacional sem gelo.
Ainda recordo que foi numa sexta-feira de inverno, meu salário não foi pago e a Marina me dispensou porque dei um amasso na melhor amiga dela. Disseram ser o Beto o boca grande. Deixa ele aparecer de novo pedindo para descolar um baseado.
Embora nada valesse à pena fui ficando, por puro comodismo. Então notei a menina dançando num canto da sala, ao som da egüinha pocotó — jeans com vários remendos, manchas, tênis idem. Depois me explicaram o nome correto daquilo: customizado. Eu não tinha nenhum interesse na produção da moça, mas o conteúdo era aceitável: coxas grossas, peitos prontos para pular fora da blusa, bunda arrebitada, cabelos compridos e soltos, batom vermelho, tudo medido por minha vista já nebulosa.
Cheguei mais, com o melhor sorriso possível, dei um oi e comecei a balançar diante dela, com todo o cuidado, pois dança mesmo seria temerário. Essa usava desodorante. Tentei conversar alguma coisa, mastigando as palavras, com os velhos chavões tipo como te chamas, vens sempre aqui, queres beber alguma coisa, mas não obtive resposta. Concluí que era muda, mas isso não fazia a menor diferença. Talvez fosse até melhor assim.
Depois de suportar algumas preciosidades do axé-funk e outros sucessos, convenci a mudinha a sairmos para a calçada em busca de oxigênio sem mistura. A moça topou com um leve gesto de cabeça e eu pensei: agora ninguém te salva. A calçada estava escura como convinha e ela não queria mesmo salvamento. Progredimos tanto que fui puxado pelo braço até um portão de acesso a três pequenos chalés maltratados, num terreno tipo corredor. O dela era o último.
Não me deixou acender a lâmpada, me arrastou com fúria para a cama, onde recuperou a fala e demonstrou todas as suas habilidades, algumas desconhecidas para mim. Após tantas surpresas a maratona veio fechar minha noite e dormi pesado.
Horas depois, claridade invadindo o chalé através da janela mal fechada, acordei com os roncos assustadores de minha parceira. Boca muito aberta, rosnando e babando, ela exibia dois reluzentes dentes de ouro, bem na frente. Enfiei roupa e tênis como pude e saí porta afora.

— Pois é, aqui tem que pagar pedágio. Passa o relógio e a carteira.
— A camisa e os tênis também. Agora se manda!
Quase agradeci por eles não gostarem do meu jeans. Me mandei mesmo, sem olhar para trás e sem correr porque o calçamento irregular me detonava os pés.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Las viejas




Em alguma esquina da Avenida 18 de julho, Montevideo, descobri a curiosa cafeteria. Entrei, lentamente, enquanto ia fazendo um rápido inventário do que a vista podia perceber.
Era um grande salão dividido em três níveis diferentes, ostentando um estilo bastante rebuscado, num dos muitos prédios antigos da cidade. As mesas e cadeiras atestavam idade indefinida, o mesmo ocorria com os balcões e luminárias; tive a estranha sensação de ter voltado, por alguma fresta do tempo, a um típico café de início do século passado. O garçom curvado, bastante idoso, descreveu com paciência as múltiplas opções à disposição para complementar qualquer café. Escolhi um cappuccino acompanhado de torradas com geléia e em seguida me pus a observar, com a necessária discrição, os demais freqüentadores que também ostentavam muitas décadas em seus currículos.
Dediquei atenção especial às duas velhas senhoras numa pequena mesa junto à janela, com visão privilegiada da rua e calçadas fronteiras. Estavam impecáveis para um figurino de 1940 talvez, mas sua elegância era incontestável, desde seus tailleurs bem cortados aos graciosos chapéus que davam vida e nobreza aos cabelos brancos. Pela proximidade de nossas mesas, não tive nenhuma dificuldade em acompanhar a alegre conversa que mantinham, ou melhor, confesso que não me esforcei nem um pouco para prestar atenção em outras pessoas que também exerciam o direito de uma conversa recheada de amenidades.
As duas estavam excepcionalmente alegres, gesticulando muito, enquanto dirigiam olhares para os passantes sem pressa daquela tarde de verão. A agitação de ambas demonstrava claramente que esperavam alguém. O nível de expectativa era tão grande que uma delas, talvez a mais idosa, repreendeu a companheira após olhar em torno:
— Contenha-se, Matilde! Vai acabar dando na vista.
— Tem razão. Desculpe, Henriqueta. Estou tão nervosa que chego a sentir calafrios.
— Quer que eu peça um chazinho de camomila para você?
— Imagina! Tudo que eu não quero hoje é um chazinho calmante.
— Então experimente aquela respiração que aprendemos na aula de yoga. Garanto que resolve.
— Você tem cada idéia, Henriqueta! Vão pensar que estou ficando maluca, praticando respiração abdominal num café.
— Ambas, não é? Estamos sim, ficando malucas. Não sei onde estava com a cabeça quando aceitei essa sua proposta sem juízo.
— Era só o que me faltava! Até parece que somos duas colegiais ingênuas prestes a cometer algum pecado.
— A bem da verdade você nunca foi uma colegial ingênua, Matilde. Ou você já esqueceu aquele professor de Física que lhe dava aulas particulares — a sós no apartamento dele?
— Como eu poderia esquecer, sua boba? Ah, era bem bonitão o professor, como era mesmo o nome, acho que esqueci. Além do mais, graças a ele não fui reprovada naquele ano. Mas nunca houve nada a não ser mão na mão, fique sabendo.
— Claro, não é, santinha?
— O que você quer dizer, Henriqueta?
— Não seja hipócrita, Matilde. Quem te viu e quem te vê, hein!
Nessa altura da conversa o garçom aproximou-se para saber se eu desejava pedir mais alguma coisa, o que me fez perder um pouco a continuidade do diálogo. Tão logo retomei minha atenção, ouvi:
— Como vou saber, criatura? A indicação foi da Margarida.
— Você já pensou que a gente possa fazer papel de bobas, Matilde? E se a Margarida estiver se divertindo à nossa custa para depois contar tudo às meninas no próximo chá?
— Nossa! Assim eu não agüento você.
— É que eu também estou nervosa. Que sabe a gente desiste e vai embora?
— Nem pensar. Estamos aqui, dentro do horário combinado, e não pretendo arredar pé. Vamos esperar trinta minutos, se nada acontecer, aí sim, vamos embora.
— É, acho que você tem razão.
A conversa parecia ter se esgotado, pois as duas senhoras concentraram-se em beber seu chá em absoluto silêncio. Aproveitei a pausa para procurar o banheiro.
Ao retornar tive uma surpresa e me arrependi do afastamento momentâneo. Elas continuavam à mesa, porém, um jovem alto e de boa aparência as acompanhava. Pude ver que ele colocou sobre a mesa uma caixa retangular, embrulhada em papel escuro que as mãos nervosas das viejas rasgaram rapidamente, para surpresa do rapaz:
— Calma, senhoras, calma! — murmurou, arregalando os olhos. Estamos num lugar público!
— Desculpe, desculpe! É a ansiedade e também o medo, é claro. Sabe, é a primeira vez, na nossa idade...
— Tudo bem, — ele sorriu, enquanto apertou afetuosamente as mãos de ambas. As senhoras não estão cometendo nenhuma falta grave. Atualmente, é um hábito muito difundido entre pessoas de todas as idades. Meu avô também aprecia muito. Podem verificar que providenciei um kit com diversos aromas. Quando precisarem de reposição é só ligar para mim.
— Sim, mas como se faz? — pergunta Henriqueta.
— Perdão?
— Quero dizer, como a gente faz para usar isso?
— É facílimo: aspirar, reter um pouco para sentir o gosto e o aroma, depois exalar lentamente.
— Será que o senhor não poderia passar lá em casa e ensinar para a gente?
— Hummm. É um pedido bastante incomum; mas, concordo. Afinal, é a primeira vez que vendo um narguilé para duas senhoras tão distintas. Qual é o endereço?

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Livros

A Iluminuras publicou uma interessante antologia da literatura contemporânea argentina, organizada por Luis Gusman – “Os outros”. São 27 autores de variadas tendências que traçam um perfil atualizado do que escrevem los hermanos. Nota-se uma generalizada busca por novos caminhos, outras formas de expressão, porque de tempos em tempos a literatura precisa trocar de pele, na feliz metáfora do organizador - também escritor e psicanalista.
O livro vale bem mais do que os R$44,00 que se paga por ele. Saludos.


Outros, Os
Narrativa Argentina Contemporânea

Tradutor: ALVES-BEZERRA, WILSON
Organizador: GUSMAN, LUIS
Editora: ILUMINURAS
Assunto: LITERATURA ESTRANGEIRA - LATINO-AMERICANA

Caçada Noturna

Encontros noturnos não costumam ser confiáveis. Ele gosta de repetir essa frase, como um lema para convencer-se de que predadores de sua espécie adoram riscos para tornar a caçada mais emocionante. No entanto, a jovem do outro lado da pequena mesa, naquele desconhecido bar da cidade baixa, parece uma comportada secretária a dissipar lembranças de um insípido dia de trabalho em algum escritório do bairro. O discreto conjunto preto de saia e blazer, acompanhado de sapatos e bolsa em tom grafite, só faz reforçar a primeira impressão. O rosto claro e bem desenhado; boca grande de dentes muito brancos, nariz e orelhas em harmonia, contrastando com os cabelos negros e exageradamente curtos. O queixo um tanto prolongado sugere uma postura arrogante. Adornos de qualquer tipo estão ausentes, inclusive nas mãos bem cuidadas de dedos muito longos.
Os olhos merecem um capítulo à parte. Escuros e enormes, analisam, sem nenhum constrangimento, em cada detalhe, a figura do homem que veio sentar-se diante de seu campo de observação sem pedir licença. Embora demonstre pouca disposição para conversar, não consegue afastar o persistente e inesperado parceiro de mesa. O quase monólogo, movido por repetidas doses de uísque e quebrado, de vez em quando, por um monossílabo, tem vida longa.
Depois de um tempo que lhe parece bastante, esgotado o arsenal de perguntas, comentários e ditos espirituosos, o caçador impaciente paga a conta e convida a mulher para sair. A resposta é uma rápida inclinação de cabeça.
Na rua, ela ignora o convite para um passeio de carro até o rio, com a cumplicidade de uma lua cheia que se esmera em vencer umas poucas nuvens escuras. Põe-se a caminhar à frente dele, sem olhar para trás, o que o obriga a segui-la, perplexo pela conduta inesperada. Algumas quadras depois, a caminhada tem seu final numa surpreendente ruela fora do tempo, onde pequenas casas muito antigas e no estilo açoriano amenizam a impaciência e irritação do acompanhante.
A jovem se detém diante de uma casinhola branca, ornada por uma porta e duas janelas azuis; resgata de sua bolsa uma grande chave de ferro, tão antiga quanto a edificação e que, após algumas voltas barulhentas, abre caminho para ambos. Ela convida-o a entrar com um gesto sóbrio; ele repete o convite mudo, cavalheiro, e a segue. De imediato, é atingido por um cheiro acre não identificado. Estranhas imagens lutam por se libertar da memória, represada pela elevada dose de álcool que ingeriu.
Sacode a cabeça para dissipar as névoas internas, enquanto a moça trata de acender velas num velho castiçal sobre a mesa redonda. Isso feito, depois de observá-lo mais uma vez, abre a porta de um quarto. Ele interpreta o gesto como uma capitulação da jovem, depois de horas em que usou de todas as estratégias conhecidas para vencer-lhe a resistência. Comemora com um sorriso de triunfo o que julga ser a vitória final e, sentindo-se confiante, busca maior proximidade física. Nesse momento, o cheiro, numa concentração bem maior, provoca-lhe vertigem e ele entra num estado de torpor e semi-inconsciência.
Após muito tempo, recobra plena percepção e sente-se contido por algo que o envolve e frustra qualquer tentativa de movimentar-se. A fraca luminosidade da rua, através de uma janela entreaberta, não o ajuda na identificação do local e nem lhe esclarece sobre o ocorrido. Apenas um odor forte, nauseante.
As pupilas dilatadas recebem algum auxílio das velas acesas na sala, através da porta aberta. Melhor seria nada ver. Escura, imensa, ela se aproxima, examinando tudo com os olhos descomunais. Sem pressa, desliza pela imensa teia que ocupa todo o quarto, enquanto move as garras num ritmo hipnótico.

Imagem de Rogério Martins

"Entre sombras", Caçada Noturna

Disponível nas livrarias Saraiva, Cultura e Palavraria, entre outras

transfiguração

ela não cede em momento algum isso é que me
exaspera me desespera ergo a mão bato novamente até sentir câimbra então troco para o outro braço continuo na esperança de que se deixe atingir afinal mas não ela não cede não se entrega à dor com isso me provoca dor bem mais intensa porque não é física não tem remédio que proporcione alívio assim me repito me repiso todos os dias nesse ácido cotidiano em que me encurralo sem desfecho nem vencido nem vencedor apenas triste porque se soubesse o que sente sem nada revelar esse sofrimento não seria em vão essa tarefa teria recompensa se a cada golpe de minha mão obtivesse uma resposta que não olhos esgazeados mas secos enfim poderia descansar dizer que cumpri poderia dormir em paz sem rolar inquieto pensando amanhã vou conseguir participar de seu mistério ser compreendido em meu tormento não mais braços cansados nem boca arquejante mas transformado pelo fim desta busca me libertar da banalidade do momento por isto me esforço muito além de meus limites tento perdoar a fraqueza que às vezes me manda desistir como se fosse possível desistir do ar que se respira ou da água que se bebe da própria iluminação enfim que alcançada me fará abandonar o corpo lasso a seus pés usando o que me resta de voz para pedir perdão me redimir de todas as faltas agradecendo a concessão final de lágrimas que sempre esperei


"Vestígios dela e outras histórias", transfiguração
Disponível na Palavraria e Livraria Cultura