segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Extravaso-me em desvios líricos, simplifico-me a tempo de eternizar tua imagem na retina e me divido entre tua busca e meus cuidados de não–invasão. Como se na intimidade houvesse regras, ou estar próximo fosse um segredo inviolável capaz de — revelado — despertar a cólera dos deuses. Enquanto a licitude aponta, em acessos de cólera, a novos pecados capitais, seu dedo acusador me escolhe como exemplo criminoso e desdenho qualquer possibilidade de clemência. Desnudo-me sem pejo e acredito que assim revelo-me sem tecer disfarces, queimo roupagens e máscaras como o aventureiro que ateia fogo às suas naus para tornar irreversível a viagem ao desconhecido. Não cedo aos impulsos burocráticos e comportados, deixo que os delírios me levem a alguma revelação, qualquer uma que não faça concessões. Entrego-me e me integro, como parte de um ritual destinado a exorcizar os medos mais secretos, ou como alguém que — cético — busca caminhos de uma fé renovadora. Porque quando todos os artifícios se revelarem nulos para a certeza da trilha, possa voltar — cego — ao ponto de partida.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Noite muito louca


 

Luz do sol, náusea e dor de cabeça, parei no meio da rua tentando me orientar. Foi a deixa para três sujeitos que passavam falarem, enquanto me mediam de alto abaixo:
— Tu não é daqui, né, magro?
— Não.
 
Não me perguntem como fui parar naquela festa. Coisas que só acontecem em finais de noite na companhia de amigos sem inspiração. Lembro de detalhes desanimadores: cerveja morna, muita fumaça de cigarro e a garçonete improvisada sem desodorante. Para mastigar só cachorro-quente frio. Não tenho certeza, mas acho que foi algum novato na turma quem sugeriu essa indiada, depois de algumas doses de uísque nacional sem gelo.
Ainda recordo que foi numa sexta-feira de inverno, meu salário não foi pago e a Marina me dispensou porque dei um amasso na melhor amiga dela. Disseram ser o Beto o boca grande. Deixa ele aparecer de novo pedindo para descolar um baseado.
Embora nada valesse à pena fui ficando, por puro comodismo. Então notei a menina dançando num canto da sala, ao som da egüinha pocotó — jeans com vários remendos, manchas, tênis idem. Depois me explicaram o nome correto daquilo: customizado. Eu não tinha nenhum interesse na produção da moça, mas o conteúdo era aceitável: coxas grossas, peitos prontos para pular fora da blusa, bunda arrebitada, cabelos compridos e soltos, batom vermelho, tudo medido por minha vista já nebulosa.
Cheguei mais, com o melhor sorriso possível, dei um oi e comecei a balançar diante dela, com todo o cuidado, pois dança mesmo seria temerário. Essa usava desodorante. Tentei conversar alguma coisa, mastigando as palavras, com os velhos chavões tipo como te chamas, vens sempre aqui, queres beber alguma coisa, mas não obtive resposta. Concluí que era muda, mas isso não fazia a menor diferença. Talvez fosse até melhor assim.
Depois de suportar algumas preciosidades do axé-funk e outros sucessos, convenci a mudinha a sairmos para a calçada em busca de oxigênio sem mistura. A moça topou com um leve gesto de cabeça e eu pensei: agora ninguém te salva. A calçada estava escura como convinha e ela não queria mesmo salvamento. Progredimos tanto que fui puxado pelo braço até um portão de acesso a três pequenos chalés maltratados, num terreno tipo corredor. O dela era o último.
Não me deixou acender a lâmpada, me arrastou com fúria para a cama, onde recuperou a fala e demonstrou todas as suas habilidades, algumas desconhecidas para mim. Após tantas surpresas a maratona veio fechar minha noite e dormi pesado.
Horas depois, claridade invadindo o chalé através da janela mal fechada, acordei com os roncos assustadores de minha parceira. Boca muito aberta, rosnando e babando, ela exibia dois reluzentes dentes de ouro, bem na frente. Enfiei roupa e tênis como pude e saí porta afora.

— Pois é, aqui tem que pagar pedágio. Passa o relógio e a carteira.
— A camisa e os tênis também. Agora se manda!
Quase agradeci por eles não gostarem do meu jeans. Me mandei mesmo, sem olhar para trás e sem correr porque o calçamento irregular me detonava os pés.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Las viejas




Em alguma esquina da Avenida 18 de julho, Montevideo, descobri a curiosa cafeteria. Entrei, lentamente, enquanto ia fazendo um rápido inventário do que a vista podia perceber.
Era um grande salão dividido em três níveis diferentes, ostentando um estilo bastante rebuscado, num dos muitos prédios antigos da cidade. As mesas e cadeiras atestavam idade indefinida, o mesmo ocorria com os balcões e luminárias; tive a estranha sensação de ter voltado, por alguma fresta do tempo, a um típico café de início do século passado. O garçom curvado, bastante idoso, descreveu com paciência as múltiplas opções à disposição para complementar qualquer café. Escolhi um cappuccino acompanhado de torradas com geléia e em seguida me pus a observar, com a necessária discrição, os demais freqüentadores que também ostentavam muitas décadas em seus currículos.
Dediquei atenção especial às duas velhas senhoras numa pequena mesa junto à janela, com visão privilegiada da rua e calçadas fronteiras. Estavam impecáveis para um figurino de 1940 talvez, mas sua elegância era incontestável, desde seus tailleurs bem cortados aos graciosos chapéus que davam vida e nobreza aos cabelos brancos. Pela proximidade de nossas mesas, não tive nenhuma dificuldade em acompanhar a alegre conversa que mantinham, ou melhor, confesso que não me esforcei nem um pouco para prestar atenção em outras pessoas que também exerciam o direito de uma conversa recheada de amenidades.
As duas estavam excepcionalmente alegres, gesticulando muito, enquanto dirigiam olhares para os passantes sem pressa daquela tarde de verão. A agitação de ambas demonstrava claramente que esperavam alguém. O nível de expectativa era tão grande que uma delas, talvez a mais idosa, repreendeu a companheira após olhar em torno:
— Contenha-se, Matilde! Vai acabar dando na vista.
— Tem razão. Desculpe, Henriqueta. Estou tão nervosa que chego a sentir calafrios.
— Quer que eu peça um chazinho de camomila para você?
— Imagina! Tudo que eu não quero hoje é um chazinho calmante.
— Então experimente aquela respiração que aprendemos na aula de yoga. Garanto que resolve.
— Você tem cada idéia, Henriqueta! Vão pensar que estou ficando maluca, praticando respiração abdominal num café.
— Ambas, não é? Estamos sim, ficando malucas. Não sei onde estava com a cabeça quando aceitei essa sua proposta sem juízo.
— Era só o que me faltava! Até parece que somos duas colegiais ingênuas prestes a cometer algum pecado.
— A bem da verdade você nunca foi uma colegial ingênua, Matilde. Ou você já esqueceu aquele professor de Física que lhe dava aulas particulares — a sós no apartamento dele?
— Como eu poderia esquecer, sua boba? Ah, era bem bonitão o professor, como era mesmo o nome, acho que esqueci. Além do mais, graças a ele não fui reprovada naquele ano. Mas nunca houve nada a não ser mão na mão, fique sabendo.
— Claro, não é, santinha?
— O que você quer dizer, Henriqueta?
— Não seja hipócrita, Matilde. Quem te viu e quem te vê, hein!
Nessa altura da conversa o garçom aproximou-se para saber se eu desejava pedir mais alguma coisa, o que me fez perder um pouco a continuidade do diálogo. Tão logo retomei minha atenção, ouvi:
— Como vou saber, criatura? A indicação foi da Margarida.
— Você já pensou que a gente possa fazer papel de bobas, Matilde? E se a Margarida estiver se divertindo à nossa custa para depois contar tudo às meninas no próximo chá?
— Nossa! Assim eu não agüento você.
— É que eu também estou nervosa. Que sabe a gente desiste e vai embora?
— Nem pensar. Estamos aqui, dentro do horário combinado, e não pretendo arredar pé. Vamos esperar trinta minutos, se nada acontecer, aí sim, vamos embora.
— É, acho que você tem razão.
A conversa parecia ter se esgotado, pois as duas senhoras concentraram-se em beber seu chá em absoluto silêncio. Aproveitei a pausa para procurar o banheiro.
Ao retornar tive uma surpresa e me arrependi do afastamento momentâneo. Elas continuavam à mesa, porém, um jovem alto e de boa aparência as acompanhava. Pude ver que ele colocou sobre a mesa uma caixa retangular, embrulhada em papel escuro que as mãos nervosas das viejas rasgaram rapidamente, para surpresa do rapaz:
— Calma, senhoras, calma! — murmurou, arregalando os olhos. Estamos num lugar público!
— Desculpe, desculpe! É a ansiedade e também o medo, é claro. Sabe, é a primeira vez, na nossa idade...
— Tudo bem, — ele sorriu, enquanto apertou afetuosamente as mãos de ambas. As senhoras não estão cometendo nenhuma falta grave. Atualmente, é um hábito muito difundido entre pessoas de todas as idades. Meu avô também aprecia muito. Podem verificar que providenciei um kit com diversos aromas. Quando precisarem de reposição é só ligar para mim.
— Sim, mas como se faz? — pergunta Henriqueta.
— Perdão?
— Quero dizer, como a gente faz para usar isso?
— É facílimo: aspirar, reter um pouco para sentir o gosto e o aroma, depois exalar lentamente.
— Será que o senhor não poderia passar lá em casa e ensinar para a gente?
— Hummm. É um pedido bastante incomum; mas, concordo. Afinal, é a primeira vez que vendo um narguilé para duas senhoras tão distintas. Qual é o endereço?

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Livros

A Iluminuras publicou uma interessante antologia da literatura contemporânea argentina, organizada por Luis Gusman – “Os outros”. São 27 autores de variadas tendências que traçam um perfil atualizado do que escrevem los hermanos. Nota-se uma generalizada busca por novos caminhos, outras formas de expressão, porque de tempos em tempos a literatura precisa trocar de pele, na feliz metáfora do organizador - também escritor e psicanalista.
O livro vale bem mais do que os R$44,00 que se paga por ele. Saludos.


Outros, Os
Narrativa Argentina Contemporânea

Tradutor: ALVES-BEZERRA, WILSON
Organizador: GUSMAN, LUIS
Editora: ILUMINURAS
Assunto: LITERATURA ESTRANGEIRA - LATINO-AMERICANA

Caçada Noturna

Encontros noturnos não costumam ser confiáveis. Ele gosta de repetir essa frase, como um lema para convencer-se de que predadores de sua espécie adoram riscos para tornar a caçada mais emocionante. No entanto, a jovem do outro lado da pequena mesa, naquele desconhecido bar da cidade baixa, parece uma comportada secretária a dissipar lembranças de um insípido dia de trabalho em algum escritório do bairro. O discreto conjunto preto de saia e blazer, acompanhado de sapatos e bolsa em tom grafite, só faz reforçar a primeira impressão. O rosto claro e bem desenhado; boca grande de dentes muito brancos, nariz e orelhas em harmonia, contrastando com os cabelos negros e exageradamente curtos. O queixo um tanto prolongado sugere uma postura arrogante. Adornos de qualquer tipo estão ausentes, inclusive nas mãos bem cuidadas de dedos muito longos.
Os olhos merecem um capítulo à parte. Escuros e enormes, analisam, sem nenhum constrangimento, em cada detalhe, a figura do homem que veio sentar-se diante de seu campo de observação sem pedir licença. Embora demonstre pouca disposição para conversar, não consegue afastar o persistente e inesperado parceiro de mesa. O quase monólogo, movido por repetidas doses de uísque e quebrado, de vez em quando, por um monossílabo, tem vida longa.
Depois de um tempo que lhe parece bastante, esgotado o arsenal de perguntas, comentários e ditos espirituosos, o caçador impaciente paga a conta e convida a mulher para sair. A resposta é uma rápida inclinação de cabeça.
Na rua, ela ignora o convite para um passeio de carro até o rio, com a cumplicidade de uma lua cheia que se esmera em vencer umas poucas nuvens escuras. Põe-se a caminhar à frente dele, sem olhar para trás, o que o obriga a segui-la, perplexo pela conduta inesperada. Algumas quadras depois, a caminhada tem seu final numa surpreendente ruela fora do tempo, onde pequenas casas muito antigas e no estilo açoriano amenizam a impaciência e irritação do acompanhante.
A jovem se detém diante de uma casinhola branca, ornada por uma porta e duas janelas azuis; resgata de sua bolsa uma grande chave de ferro, tão antiga quanto a edificação e que, após algumas voltas barulhentas, abre caminho para ambos. Ela convida-o a entrar com um gesto sóbrio; ele repete o convite mudo, cavalheiro, e a segue. De imediato, é atingido por um cheiro acre não identificado. Estranhas imagens lutam por se libertar da memória, represada pela elevada dose de álcool que ingeriu.
Sacode a cabeça para dissipar as névoas internas, enquanto a moça trata de acender velas num velho castiçal sobre a mesa redonda. Isso feito, depois de observá-lo mais uma vez, abre a porta de um quarto. Ele interpreta o gesto como uma capitulação da jovem, depois de horas em que usou de todas as estratégias conhecidas para vencer-lhe a resistência. Comemora com um sorriso de triunfo o que julga ser a vitória final e, sentindo-se confiante, busca maior proximidade física. Nesse momento, o cheiro, numa concentração bem maior, provoca-lhe vertigem e ele entra num estado de torpor e semi-inconsciência.
Após muito tempo, recobra plena percepção e sente-se contido por algo que o envolve e frustra qualquer tentativa de movimentar-se. A fraca luminosidade da rua, através de uma janela entreaberta, não o ajuda na identificação do local e nem lhe esclarece sobre o ocorrido. Apenas um odor forte, nauseante.
As pupilas dilatadas recebem algum auxílio das velas acesas na sala, através da porta aberta. Melhor seria nada ver. Escura, imensa, ela se aproxima, examinando tudo com os olhos descomunais. Sem pressa, desliza pela imensa teia que ocupa todo o quarto, enquanto move as garras num ritmo hipnótico.

Imagem de Rogério Martins

"Entre sombras", Caçada Noturna

Disponível nas livrarias Saraiva, Cultura e Palavraria, entre outras

transfiguração

ela não cede em momento algum isso é que me
exaspera me desespera ergo a mão bato novamente até sentir câimbra então troco para o outro braço continuo na esperança de que se deixe atingir afinal mas não ela não cede não se entrega à dor com isso me provoca dor bem mais intensa porque não é física não tem remédio que proporcione alívio assim me repito me repiso todos os dias nesse ácido cotidiano em que me encurralo sem desfecho nem vencido nem vencedor apenas triste porque se soubesse o que sente sem nada revelar esse sofrimento não seria em vão essa tarefa teria recompensa se a cada golpe de minha mão obtivesse uma resposta que não olhos esgazeados mas secos enfim poderia descansar dizer que cumpri poderia dormir em paz sem rolar inquieto pensando amanhã vou conseguir participar de seu mistério ser compreendido em meu tormento não mais braços cansados nem boca arquejante mas transformado pelo fim desta busca me libertar da banalidade do momento por isto me esforço muito além de meus limites tento perdoar a fraqueza que às vezes me manda desistir como se fosse possível desistir do ar que se respira ou da água que se bebe da própria iluminação enfim que alcançada me fará abandonar o corpo lasso a seus pés usando o que me resta de voz para pedir perdão me redimir de todas as faltas agradecendo a concessão final de lágrimas que sempre esperei


"Vestígios dela e outras histórias", transfiguração
Disponível na Palavraria e Livraria Cultura